Interconexão de redes moleculares

É impressionante quando vejo como o modelo TCP/IP da Internet, embora possa ter suas limitações, conseguiu solucionar o problema de interconexão de redes de forma simples e escalável. Hoje posso dizer que o lema "IP sobre tudo e tudo sobre IP" faz ainda mais sentido para mim. 

No início dos anos 2000, a importância do IP já estava consolidada. Atuando sobre tecnologias de rede heterogêneas e carregando as mais diferentes aplicações, o IP já estava estabelecido e o aumento gradual do número de dispositivos era certo na expansão da Internet. Não é à toa que o IPv6 já estava padronizado nesta época.

Contudo, até aquele momento, a maior parte de toda comunicação era realizada por dispositivos que qualquer um poderia reconhecer como um computador. O que se tinha de mais avançado ao público em geral eram os computadores portáteis (laptops) e que rodavam os mesmos sistemas operacionais e aplicativos dos computadores de mesa.

O surgimento de dispositivos como smartphones e tablets, no final da primeira década deste milênio,  trouxe uma mudança considerável à este cenário. Já não pareciam mais um computador: sistema operacional diferente, forma de usar baseada em toques, mobilidade, aplicativos diferenciados e conectividade foram características que colocaram o termo computador pessoal em outro patamar. 

E o IP? O IP continuou reinando. Mesmo hoje, no fim da década que vivemos, o IP continua reinando na pluralidade de dispositivos domésticos como lâmpadas, TVs, ventiladores, assistentes pessoais etc, tudo aquilo que compõe o que convencionamos chamar de Internet das Coisas, e que, no fim, é só o bom e velho TCP/IP fazendo seu trabalho em dispositivos cada vez menores e menos parecidos com computadores.

Mas para onde vai isso tudo? Qual a próxima fronteira para o IP? Essas foram as perguntas que me fiz ao ler o artigo Modelo de Comunicação Molecular Multiportadora com Ruído Intracelular e Intercelular de Ligia F. Borges, Michael T. Barros e Michele Nogueira apresentado no SBRC 2020 e que aconteceu esta semana. 

O tema do artigo são as chamadas redes moleculares, isto é, redes de comunicação (nanoredes) entre dispositivos  de escala nanométrica (atuadores ou sensores biológicos muito específicos) e que se comunicam por meio de moléculas que são enviadas, célula-a-célula, de um nanodispositivo para outro. O objetivo do artigo é a caracterização do ruído intracelular e intercelular para comunicação molecular multiportadoras (usando moléculas diferentes ao mesmo tempo) sobre células do sistema nervoso.

Este não foi o meu primeiro contato com esta área, já tinha visto outros trabalhos, mas este foi o primeiro que observei mais atentamente. A julgar pelo que foi descrito, a pesquisa nesta área ainda investiga o equivalente à camada física do modelo TCP/IP (algo mais próximo dos estudos sobre comunicação eletromagnética no século XIX), mas é de se pensar que, se o meio de comunicação bioquímico for tão diverso quanto o meio eletromagnético, no futuro teremos diferentes tecnologias de comunicação molecular e essa heterogeneidade vai requerer algum tipo de IP sobre células. Bom, pelo menos endereços IPv6 nós já temos de sobra.

Mas será que usaremos o mesmo protocolo IP que temos atualmente? Penso que não exatamente, já que os cabeçalhos são grandes demais para canais de capacidade muito pequena e dispositivos com pouco poder de processamento e com baixa autonomia de energia.

Na realidade, o IPv6 atual é problema até mesmo para alguns dispositivos mais restritos da Internet das Coisas, e por isso existe o padrão 6LoWPAN (IPv6 over Low-Power Wireless Personal Area Networks), que usa técnicas de compressão de cabeçalho para colocar o IP sobre redes de dispositivos de baixa capacidade. 

Voltando às redes moleculares, será que no futuro precisaremos explorar técnicas similares às do 6LoWPAN para criarmos redes moleculares pessoais que se interligam com nossos assistentes pessoais e assim sabermos como anda nossa saúde pela manhã? Será que usaremos outras redes químicas e bioquímicas para comunicar as redes intracorporais com o mundo exterior? Bom, essas perguntas mostram que ainda temos muito chão pela frente e as possibilidades são inúmeras.

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