Quem vacinar primeiro?

No momento em que as primeiras vacinas para o Covid-19 começam a dar resultados, a escassez de vacinas, por um lado, e as dificuldades de transporte e armazenamento, por outro, trazem à tona um problema: quem deve ser vacinado primeiro? Se você não entendeu a questão, deixe-me dar um pouco mais de contexto.

No campo da ciência das redes, os estudos teóricos e práticos sobre o espalhamento de epidemias em redes complexas já é debatido pelo menos desde 2001 a partir do trabalho Epidemic Spreading in Scale-Free Networks de Romualdo Pastor-Satorras e Alessandro Vespignani. Este trabalho discute o espalhamento de vírus de computadores pela Internet, sob a perspectiva de que esta é uma rede livre de escala. 

Os autores concluem que a topologia da rede (formada por Hubs proeminentes, como já vimos) tem um papel fundamental no comportamento da infecção, fazendo com que tais redes sejam propícias ao espalhamento e persistência da doença independentemente da taxa de transmissão do agente infeccioso. Os Hubs neste caso atuam como super-espalhadores (super-spreaders) da infecção. Importante destacar que essa característica de super-espalhamento não tem uma razão biológica, mas social, ou seja, ela se deve ao elevado número de contatos e lugares visitados pelos super-espalhadores, que quando infectados ajudam a espalhar o vírus muito mais do que uma pessoa reclusa.

Um trabalho que tratou do problema de imunização em redes complexas, em particular, é o artigo Efficient Immunization Strategies for Computer Networks and Populations de Cohen, Havlin e Daniel ben-Avraham, publicado em 2003 na Physical Review Letters. Embora a imunização de alvos específicos, no caso os super-espalhadores, seja uma estratégia bastante eficaz, conforme demonstrada no trabalho Immunization of complex networks de Pastor-Satorras e Vespignani, o problema central da imunização estudado por Cohen, Havlin e ben-Avraham é que a rede de contados sociais é extensa, assim a tarefa de mapear toda a rede de contatos humana e encontrar os alvos específicos não é factível. Devemos, portanto, tratar os enlaces da rede como desconhecidos a priori.

Contudo, Cohen, Havlin e ben-Avraham propõem uma estratégia simples para realizar a imunização baseada na coleta por amostragem de uma pequena fração de vizinhos de nós escolhidos ao acaso. Esta estratégia é denominada imunização de conhecidos (acquaintance immunization) e, em termos práticos, é como se fizéssemos entrevistas aleatórias em uma comunidade onde cada pessoa tem que dizer um conhecido seu para ser vacinado. Ao final das entrevistas, vacinamos os mais votados. O que estes autores mostram é que esta estratégia simples tem boa probabilidade de nos revelar os super-espalhadores sem que seja preciso mapear todos os enlaces e todos os nós da rede.

Sabendo disso, a questão central que se põe na imunização para o Covid-19 é se devemos seguir estratégias como as já delineadas ou se o Covid-19 nos coloca um desafio novo, afinal sabemos que há os grupos de risco, como o caso dos idosos. Não seria melhor vaciná-los primeiramente? Assim, evitaríamos a pressão sobre o sistema de saúde e o número de fatalidades. O dilema se apresenta porque os membros dos grupos de risco não costumam ser super-espalhadores, logo é preciso optar. 

Além disso, caso se decida pela estratégia de vacinação com alvo nos super-espalhadores, será que a estratégia de Cohen, Havlin e ben-Avraham será suficiente para imunizar uma rede cuja topologia não conhecemos? Embora tenha sido demonstrada por meio de modelos computacionais em topologias livres de escala e em pequenos grupos em um campus universitário.

Para um maior aprofundamento desta discussão sugiro a leitura do artigo que me trouxe estas reflexões. O artigo The Vulnerable Can Wait, Vaccinate the Super-Spreaders First de Christopher Cox, publicado na revista Wired em outubro de 2020, trata dos trabalhos que falamos (e de outros) e apresenta a opinião de diversas autoridades do CDC americano, bem como a opinião de alguns dos autores que citei, como Vespignani e Havlin. 

Em particular, é interessante ver como estes dois estudiosos defendem posições diferentes, Vespignani pela imunização do grupo de risco primeiro e Havlin, ele mesmo um membro do grupo de risco, pela imunização dos super-espalhadores. Vale muito a leitura.

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