Medidas de controle das epidemias em rede

O recente trabalho Transmission heterogeneities, kinetics, and controllability of SARS-CoV-2 de Kaiyuan Sun e colaboradores, publicado na Science em Novembro deste ano, traz interessantes resultados para um melhor entendimento da dinâmica de espalhamento e controle do Covid-19. Em particular, o artigo é interessante porque traz dados que podem ser usados para avaliar a eficácia das medidas de controle como o lockdown

Um ponto que vale destacar sobre o artigo é que um dos coautores é Alessandro Vespignani, famoso por suas contribuições na área de epidemiologia e ciência de redes. Só por isso, já vale a pena a leitura.

Os autores analisaram dados epidemiológicos (data em que surgiram os primeiros sintomas, data de internação etc) de 1178 indivíduos primários infectados nos municípios da província de Hunan na China (província vizinha à Hubei, onde foram registrados os primeiros casos de Covid-19). Estes indivíduos foram identificados como primários por terem sido infectados no início do espalhamento do vírus. Além destes, foram investigados também os dados epidemiológicos de mais de quinze mil contatos próximos destes pacientes primários. A partir destes dados foi possível construir redes de contato com mais de dezenove mil enlaces, indicando as relações entre estes pacientes.

Ao investigar esta rede, um dos resultados encontrados pelos autores é que $80\%$ das infecções secundárias, isto é, as infecções dos contatos próximos, tiveram origem em apenas $15\%$ dos indivíduos primários, indicando a presença de super-espalhadores, como é esperado em redes reais. Nós inclusive já discutimos anteriormente este aspecto, quando falamos sobre Quem vacinar primeiro?

Observando diversos aspectos demográficos e clínicos, a rede foi segmentada em cinco grupos de exposição baseadas no tipo de contato que os contatos próximos tiveram com os pacientes primários: doméstico (primário e secundário moram na mesma casa), familiar estendido (primário e secundário são parentes próximos), social (primário e secundário são amigos, colegas de trabalho ou de sala etc), comunitário (secundários são profissionais que tiveram contato com primário em restaurantes e outros serviços) e médico (secundários são profissionais de saúde que trabalharam no diagnóstico, tratamento e cuidados do primário).

Assim, os autores puderam avaliar como a política de lockdown, determinada na província de Hunan, impactou sobre cada uma destas categorias de relações. Os resultados mostraram uma mudança significativa nos padrões de transmissão do vírus durante o período de lockdown. A probabilidade de transmissão nos grupos doméstico e familiar estendido aumentou sensivelmente, enquanto que nos grupos social e comunitário esta probabilidade diminuiu. No grupo médico não houve evidências de mudança, além de terem a menor probabilidade de transmissão de todos os grupos, indicando a eficácia das medidas protetivas usadas pelos pacientes e equipes médicas antes e durante o lockdown.

O aumento do risco de transmissão no grupo doméstico é devido, basicamente, ao aumento da frequência de contatos domésticos, causado pelo confinamento. Este resultado é interessante porque corrobora a teoria na área de ciência das redes. Sabe-se, pelo menos desde 2003, pelo trabalho Properties of highly clustered networks de Mark Newman (use a busca aqui no blog para ver indicação de outros trabalhos deste autor), que o aumento do coeficiente de aglomeração atrapalha o desenvolvimento das epidemias, diminuindo o pico da curva. Em termos da topologia da rede, o lockdown tem o papel de, ao mesmo tempo, cortar enlaces longos e reforçar os enlaces curtos. Note-se que os enlaces curtos estão justamente nas redes de contatos domésticos, que tendem a ser altamente aglomeradas.

Usando os dados coletados e modelos matemáticos próprios, os autores puderam ainda avaliar cenários com diferentes medidas protetivas. Os autores avaliaram, por exemplo, um cenários sem lockdown, em que apenas é empregada uma medida individual para mitigação da epidemia, a saber, o isolamento de pacientes e quarentena dos respectivos contatos próximos tão logo fossem detectados os primeiros sintomas. Os resultados desta análise mostraram que o controle da epidemia, a partir do nível em que se encontrava no momento do estudo e usando somente esta medida é inviável

Os autores ainda avaliaram cenários combinando o isolamento individual com medidas de lockdown, e fizeram isso considerando diversos níveis de eficácia destas medidas. Em um dos cenários, os autores observaram que garantindo uma rápida detecção e isolamento de $70\%$ dos casos, o lockdown poderia ser de apenas $30\%$. Assim, os autores advogam que as medidas de isolamento individual eram insuficiente para o controle da situação e que as medidas de controle ao nível populacional foram essenciais para controlar o avanço da epidemia. Como medidas populacionais os autores destacam não só o lockdown, mas medidas como o trabalho remoto, operações reduzidas de indústria e serviços e a adoção em massa de máscaras.

A principal contribuição deste artigo, em minha opinião, é conseguir quantificar o impacto de diferentes medidas de controle de epidemias. Além disso, as autores sugerem que este impacto é positivo porque estas medidas conseguem modificar a rede de transmissão afetando o número e duração das interações.

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