Quais locais evitar em uma pandemia?


No artigo anterior - Quem vacinar primeiro? - tratamos da questão da imunização sob a perspectiva das redes complexas e recapitulamos os trabalhos científicos seminais da área, bem como as opiniões dos autores destes trabalhos sobre a imunização para o Covid-19.
 
Lá no artigo nós falamos sobre o conceito de super-espalhadores nas redes epidêmicas, o qual está associado aos indivíduos que possuem um alto grau de conectividade. Porém neste post, queremos falar de uma outra perspectiva para este conceito. Em um artigo publicado na Nature no mês passado, Serina Chang e colaboradores exploram o conceito de locais super-espalhadores, isto é, locais de interesse nas cidades onde o risco de transmissão é maior devido às aglomerações e espaços confinados.

O artigo Mobility network models of COVID-19 explain inequities and inform reopening apresenta um modelo temporal de transmissão do Covid-19 baseado em redes complexas. Sua perspectiva é diferente porque investiga o espalhamento da doença de forma mais agregada. Ao invés dos indivíduos, a rede criada associa estabelecimentos de interesse (como restaurantes, academias, cafés...) e unidades geográficas com uma população de 600 a 3.000 pessoas, denominadas Census Block Group (CBG).

O modelo foi criado a partir de um conjunto de dados de mobilidade de 98 milhões de americanos baseado em dados da rede celular e coletados pela SafeGraph, uma empresa especializada em agregar dados anônimos de aplicações móveis. Foram analisados os fluxos de visitação em mais de meio milhão de estabelecimentos divididos em 10 grandes cidades americanas. 

As redes de cada cidade foram então usadas para estudar a evolução de uma epidemia segundo um modelo SEIR focado na situação de saúde de cada CBG. As previsões obtidas pelo modelo mostraram boa correlação com as médias semanais de infecção reais no período de estudo (8 de março à 9 de maio de 2020). O fato do modelo baseado apenas em mobilidade ser capaz de acompanhar a curva de casos reais, mostra o grande papel que a mobilidade têm no espalhamento da epidemia.

Os autores também usaram seu modelo para estudar medidas de reabertura dos estabelecimentos. A partir dos resultados os autores passam a mensagem de que o processo de convivência com a pandemia não precisa focar no fechamento completo por meses a fio. Ao invés disso, as políticas deveriam instituir limites de ocupação para reduzir o tráfego de pessoas nos estabelecimentos, principalmente em alguns deles, já que as simulações epidemiológicas dos autores mostraram que a maioria das infecções preditas ocorrem em uma pequena porção dos locais.

Nas simulações para Chicago, por exemplo, os locais super-espalhadores (em torno de 10% dos mais de 60 mil locais estudados) corresponderam à 85% das infecções previstas pelo modelo. Resultados similares foram observados nas demais cidades estudadas. Os principais locais super-espalhadores identificados pelos pesquisadores são restaurantes (full-service restaurants), academias (fitness centres), cafés e bares (cafes and snack bars) e hotéis (hotels and motels), com destaque para as unidades menores e mais movimentadas, ocupadas por longos períodos de tempo. Vale dizer que os restaurantes foram encontrados como quatro vezes mais arriscados do que os demais.

Sobre a proposta de limites de ocupação, as simulações encontraram resultados diferentes variando de cidade para cidade, mas de modo geral limitar a ocupação se mostrou uma estratégia boa para diminuir as infecções sem precisar recorrer ao fechamento completo. Para Chicago, por exemplo, manter taxas de ocupação de 20% da lotação máxima nos estabelecimentos reduziria as novas infecções em 80%. Do ponto de vista econômico, as simulações mostram que o estabelecimento manteria em torno 58% de seus visitantes totais, o que é uma redução considerável, mas menor do que poderia ser estimado ingenuamente.

O artigo ainda vai além e mostra o que ocorre quando as previsões do modelo são segregados por grupos socioeconômicos e raciais. Observe-se que o modelo desenvolvido é agnóstico à informações sociais, contudo os padrões de mobilidade capturam o fato de que grupos de menor poder aquisitivo ficam sujeitos a um maior risco. Os principais mecanismos que produziram esta disparidade é que os indivíduos destes grupos não puderam reduzir sua mobilidade e que os estabelecimentos visitados por indivíduos de menor poder aquisitivo se mostraram menores e mais lotados.

Estas são as contribuições principais deste artigo, em minha opinião. Acredito que embora saibamos o papel positivo da mobilidade na redução das curvas epidêmicas - afinal o lockdown foi a alternativa de muitos países nos momentos de sufoco -, o modelo de Chang e colaboradores consegue apontar os estabelecimentos que precisam de atenção e sugere estratégias diferentes para conviver com a pandemia.

Se você tem interesse em se aprofundar sugiro, além do artigo, acessar o site do trabalho https://covid-mobility.stanford.edu/. Veja também esta matéria que traz opiniões de alguns dos autores do trabalho. Se tiver interesse também pode acessar os códigos usados nas simulações no github da autora.

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