O fim do estoque IPv4 e o crescimento do IPv6

Apesar de todos os esforços e a adoção de bons princípios básicos (como simplicidade, autonomia administrativa e foco na borda da rede) desde sua criação, existem decisões de engenharia da Internet que precisaram ser revistas ao longo do caminho. Uma delas é o espaço de endereçamento da Internet, representado pelo tamanho em bits do endereço IP.

As discussões a respeito de como seria a Internet podem ser encontradas no conjunto de documentos denominados Internet Experiment Notes (IEN). Estes materiais documentam os debates iniciais ocorridos entre 1977 a 1982. As versões iniciais dos protocolos que hoje conhecemos como TCP e IP nasceram daí. O padrão que adotamos hoje é denominado de IPv4 (observe que 3 versões anteriores já existiam) e foi definido na RFC 760 (IEN 128), publicada em Janeiro de 1980.

A escolha por um endereço de 32 bits, com 8 bits para rede indicar a rede e 24 bits para identificação de hospedeiros, parecia muito para condução da ARPANET. Contudo, a conversão dela na Internet que conhecemos, ao longo dos anos 90 do século XX, fez com que essa quantidade de endereços passasse a ser vista como extremamente pequena para endereçar tudo o que surgiu.

A explosão de demanda por endereços lentamente conduziu a uma reorganização da forma como os endereços IP eram distribuídos. Vale a pena conferir esta história no artigo The History of IANA: An Extended Timeline with Citations and Commentary de Joel Snyder , Konstantinos Komaitis e Andrei Robachevsky. No meio do caminho da história contada no artigo foram criados os cinco Regional Internet Registries (RIR) para cuidar, dentre outras coisas, da alocação de endereços IP de cada uma das grandes regiões: América Latina (LACNIC), Ásia e Pacífico (APNIC), África (AfriNIC), Europa (RIPE) e América do Norte (ARIN).

Além disso, a demanda por mais endereços também levou a uma nova decisão de engenharia com a reformulação do protocolo IP, denominada de IPv6 e padronizada inicialmente pela RFC 1883 em dezembro de 1995, mas que foi atualizada pela RFC 2460 de dezembro de 1998. Para lidar com o crescente número de hospedeiros (se na época isso era um problema imagine hoje, com a grande variedade de dispositivos que “falam” IP), o espaço de endereços foi aumentado de 32 bits, o que dava uns 4 bilhões de endereços, para 128 bits, o que dá 340 undecilhões de endereços ($340x10^{36}$). 

Para termos ideia da dimensão da mudança, com IPv4 não conseguimos hoje dar um endereço único para cada pessoa do mundo, mas com IPv6 é possível dar um endereço IP para cada célula de cada uma delas (são aproximadamente 10 trilhões de células no corpo humano, e então precisamos de $8x10^{22}$ endereços), o que permite endereçamento suficiente para redes moleculares.

Contudo, mais de vinte anos depois, o IPv6 ainda não é uma realidade estabelecida na Internet como um todo.

Em particular, ainda continuamos a usar e distribuir IPs da versão 4, o que tem levado ao esgotamento destes endereços nos diversos RIRs. O APNIC foi o primeiro RIR a esgotar os endereços IPv4 de sua região em 31/01/2011, e o RIPE veio logo atrás com seu último endereço IPv4 sendo distribuído em 14/04/2011. Cerca de um ano depois, foi a vez do esgotamento dos endereços do RIR ARIN em 14/09/2012. E este ano, em 19/08/2020, tivemos o esgotamento dos endereços IPv4 do LACNIC. Restam agora apenas endereços IPv4 do AfriNIC para serem distribuídos. Se quiser saber mais detalhes sobre como funciona a alocação IPv4 na América Latina sugiro dar uma olhada aqui

Embora o IPv4 ainda seja dominante, o IPv6 é a real solução para a escassez de endereços IPv4. E embora não seja o padrão mais comum, pelo menos o tráfego IPv6 segue crescendo. Hoje no Brasil, por exemplo, o tráfego IPv6 representa mais de um terço do volume total. 

Uma forma de vermos esta evolução é pelo número de acessos ao Google usando IPv6. O Google mantém um site que mostra que 36% dos acessos brasileiros ao Google ocorrem por meio de IPv6, e este índice é muito bom quando comparado ao resto do mundo. Para o Reino Unido, por exemplo, aproximadamente 32% do tráfego aos servidores do Google é IPv6.

Colocando em perspectiva, a despeito de todos os esforços, acredito que ainda precisaremos de mais uma década para termos a comunicação IPv6 como dominante na Internet. Para quem quiser se aprofundar na importância do IPv6, que vai muito além de um espaço de endereçamento maior, recomendo a playlist Por que IPv6? com vídeos curtos do NIC.br sobre o assunto.

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